Mário Sérgio
Cortella: Na educação começamos a sair da indigência
O
filósofo e professor Mário Sérgio Cortella se diz otimista com o futuro e
afirma em entrevista à repórter Marina Gama Cubas, publicada nesta
segunda-feria (15) coluna Direto da Fonte, do Estadão,
que o Brasil conseguiu avançar na diração de ser a pátria educadora.
"Evidentemente isso não nos acalma. Apenas traz a certeza de que é
possível fazê-lo".
Segue trechos da entrevista:
Mário Sérgio Cortella escreve livros, faz comentários em rádio e TV e dá pelo
menos 60 palestras por mês. Mas garante: sua vida "não é corrida, é
organizada". Antigamente, compara, dava aula de manhã, à tarde e à noite.
Filósofo, educador e escritor, ele tem uma bagagem que vai além da sala de
aula: foi também secretário municipal da Educação da gestão da Luiza Erundina.
Nesta entrevista a Marina Gama Cubas, ele volta o olhar para os últimos 30 anos - um
período em que o Brasil "começou a sair da indigência na área da educação
escolar" e constata "uma ruptura para melhor". Mede a
temperatura da geração que foi às ruas reivindicar seus sonhos, conclui que há muito
o que fazer, mas sua mensagem é a de um otimista, inclusive quando o assunto é
ética: "Somos um País na adolescência, caminhando para a maturidade".
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Marina Gama Cubas: O Brasil tem conseguido avançar na direção de ser a
pátria educadora?
Cortella: Bastante. O lema adotado veio num momento perturbado, de
restrições orçamentárias, mas deveria ser colocado como um projeto de nação. O
Brasil, nos últimos 30 anos, começou a sair da indigência na área da educação
escolar. Seja nos governos de FHC, de Lula, no primeiro mandato da Dilma ou
agora. Evidentemente isso não nos acalma. Apenas traz a certeza de que é
possível fazê-lo.
O que chama de indigência na educação?
Durante séculos tivemos um nível de exclusão na educação básica muito
forte, além de um nível de analfabetismo adulto que ainda é vergonhoso, mas que
saiu dos patamares de tempos anteriores. Havia ainda um ensino superior
restrito a uma camada menor da população sob o argumento de que isso resultaria
em maior qualidade - o que, numa democracia, é um argumento inaceitável. Se
você não tem quantidade total, não tem qualidade, tem privilégio. Nesse
sentido, há uma ruptura nos últimos 30 anos, para melhor. Além disso, o Brasil
não tinha quase instrumentos de avaliação das suas estruturas educacionais. As
ferramentas de hoje permitem uma visão mais nítida do que estamos fazendo. E
também, claro, a Constituição de 1988 alterou a distribuição de recursos e
aumentou a possibilidade de sustentação da educação municipal. Mas, repetindo
Churchill, estamos no fim do começo. Não no começo do fim.
Qual o grande problema da educação brasileira hoje?
Temos três grandes problemas. Um deles é a democratização não só do acesso,
mas também da permanência. Não basta colocar crianças na escola em larga
escala, é preciso que elas permaneçam e tenham uma educação que seja relevante
para a vida coletiva. Não só com capacitação técnica, mas com base de
cidadania. Em segundo lugar, precisamos de uma nova qualidade de ensino, com uma
estrutura mais voltada para o século 21. Costumo brincar que temos um choque
intersecular na estrutura educacional. Os alunos são do século 21. Nós,
professores, somos do século 20. E as metodologias e a organização são do
século 19. E essa necessidade de atualização exige uma formação mais continuada
da parte docente. O que significa, também, ter maiores recursos.
Como viu a ocupação de escolas por estudantes no final do ano passado?
Um movimento belíssimo no sentido pedagógico, porque acabou fazendo com que se
desse uma atenção maior para a questão que era decisiva na vida das famílias e
das comunidades: a da reestruturação escolar. Ela mostrou do que um grupo de
jovens, que não teve como referência de ação política uma estrutura ditatorial,
é capaz quando pode atuar em um contexto democrático e para aquilo que
considera correto. Houve um equívoco, no primeiro momento, de chamar a atitude
dos estudantes de invasão. Quando o espaço é público, se tem uma ocupação. E
essa ocupação se dá em nome das ideias defendidas. Essa ação pode se
transformar em um esforço coletivo para que tanto a autoridade docente como os
estudantes surfem em outras ondas - as necessárias para que a educação não seja
menos relevante do que deve ser.
Pesquisa do Data Popular mostra que apenas 3% dos brasileiros afirmam ser
corruptos, mas que 70% admitem ter tomado pelo menos uma vez na vida uma
atitude corrupta. Uma ação torna alguém corrupto?
Nenhum e nenhuma de nós é imune à degradação ética. Nenhum e nenhuma de nós
é invulnerável. Por exemplo, se eu considerar um ato corrupto eu ter colado na
prova, ou ter tentado passar à frente de alguém na fila. Esses atos do
cotidiano, se reiterados, caminharão em direção a uma corrupção mais extensa.
Esses delitos nossos, que individualmente ou isoladamente têm uma ressonância
menor, se tornados hábitos agregam uma negatividade. O fato de se poder dizer
que nenhum de nós é imune, no entanto, não significa que isso seja obrigatório.
Como costumo dizer sempre, a corrupção é uma possibilidade, não é uma
obrigatoriedade. Apenas 3% admitirem isso é um índice que eu olharia como
reduzido se imaginarmos o quanto somos, de fato, capazes de qualificar a
corrupção de vários modos.
As pessoas não conseguem ver a corrupção nos próprios atos?
Não conseguimos. Temos uma coisa chamada consciência que trabalha muito
fortemente o que chamamos de "ética da conveniência". Ela ocorre em
vários casos. Por exemplo, quando a pessoa diz "eu faço, mas todo mundo
faz". Ou: "se não for assim, eu não vou conseguir". A ética da
conveniência é malévola porque degrada a nossa condição, mas não é privativa da
brasilidade. Precisamos ter cautela ao falar em ética para não esquecer que
ética não é cosmética, uma coisa de fachada. Vamos a um exemplo. No parâmetro
em relação à corrupção do mundo, que saiu há algumas semanas, um dos países
menos corruptos, em nível de governo, é a Suíça. Mas é um dos países que mais
acolhem dinheiro corrupto do mundo. É necessário ter cautela com essa
hipocrisia. Ao mesmo tempo, temos um aprendizado de conduta em relação ao nosso
modo de vida privado e público. Isso significa que há uma construção histórica
em relação aos nossos direitos e deveres. Por que somos hoje mais propensos a
desejar a honestidade? Porque temos uma imprensa livre que pode tornar público
aquilo que é necessário. Também porque temos tecnologia digital que nos coloca
em estado de vigilância mais contínua. E porque uma parte de nós já entendeu
que a fratura ética leva à derrota coletiva.
Acha que o Brasil vai sair melhor da Lava Jato?
Cada vez mais. Há todo um ambiente, hoje, que é mais favorável a que a
gente fique mais atento em relação às condutas privada e pública. Se nós formos
os mesmos daqui a 10 anos, isso será um sinal de que a nossa canalhice é
superior à nossa decência, e não acredito que assim seja.
Você diz que a democracia é aceitação coletiva das regras. A coletividade,
então, pode quebrar essas regras?
Nas democracias há o direito de insubordinação civil, que é a recusa da
população ou de parte dela a algo que considere inadequado, injusto ou
violento. O filósofo John Locke, no Tratado sobre o Governo Civil, fala do
equilíbrio entre os poderes, e esse elemento é um dos que influenciaram a
independência dos Estados Unidos e a Constituição brasileira de 1988. A Constituição
não está além da própria vida em comunidade.
Os atos nas ruas mostraram também manifestações de intolerância. Como vê
isso?
Há aí algo que Vladimir Lênin chamava de teoria da curvatura da vara. É uma
ideia fácil de entender: após você pegar uma vareta que está fincada no chão e
envergá-la fortemente numa direção, ao soltá-la ela vai fortemente na direção
oposta. As manifestações dos últimos tempos permitiram que viessem à tona não
só pensamentos contrários e divergentes, mas também as doenças. Isto é, as
doenças mentais, principalmente a da intolerância, que é sinônimo de covardia e
de incapacidade de ouvir aquilo que não pensa.
Estamos mais intolerantes?
É maior, hoje, a possibilidade de aclarar a intolerância. As pessoas têm
muito maior condição de ser intolerantes e repartir esse comportamento. Não
tínhamos, até algum tempo, qualquer plataforma em que eu pudesse manifestar
isso, exceto individualmente. Em segundo lugar, eu nem poderia fazê-lo porque
seria imediatamente submetido à pressão de alguém mais poderoso. Em terceiro, a
violência no mundo é muito mais reduzida, comparada ao que já foi. Nós temos
hoje capacidade maior de produzir violência, mas a rejeição a ela é maior.
Você se considera um realista ou um otimista?
Eu acho que todo o otimista é um realista compromissado. O pessimista é
acima de tudo um desistente, que se senta e espera dar errado. O otimista tem
muito mais trabalho porque precisa ir atrás. Prefiro ser otimista.
Fonte: Direto da Fonte (Estadão)
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