ENSINO
MUTILADO COM O FIM DA OBRIGATORIEDADE DA SOCIOLOGIA E FILOSOFIA: VLADIMIR
SAFATLE
Por Vladimir
Safatle
Na semana passada, o relator da medida provisória
sobre as modificações do ensino médio, editada por aquilo que alguns chamam de
“governo”, fez algumas considerações a respeito de suas preferências. Dentre
elas, ele sugere que as disciplinas de filosofia e sociologia deixem de ser
disciplinas de fato e se transformem em “conteúdos transversais” lecionados em
aulas de história. Ou seja, mesmo que seus filhos escolham seguir uma
concentração em ciências humanas, tais conteúdos não seriam mais oferecidos como
disciplinas autônomas, o que vai contra todo o discurso a respeito de oferecer
mais condições para os alunos aprofundarem seus interesses efetivos.
Essa consideração do senhor relator nos leva, no
entanto, a colocar questões a respeito da importância do ensino de filosofia e
sociologia para adolescentes. Afinal, devem nossos adolescentes aprender
filosofia e sociologia? Pois é claro que a proposta de reduzi-las a “conteúdos
transversais” é apenas uma maneira um pouco mais cínica de retirá-las. Um
professor de história, embora possa e deva conhecer questões de filosofia e
sociologia que são pertinentes a seu objeto de estudo, não teria condições de
tratar de tais conteúdos com a profundidade devida à docência.
Na verdade, o que procura se colocar é que filosofia
e sociologia não são tão relevantes assim e poderiam muito bem ser eliminadas
como disciplinas. Seus filhos poderiam muito bem viver sem elas. Mas coloquemos
a questão implícita neste debate na sua forma correta, a saber: por que há
setores da sociedade brasileira que se incomodam tanto com seus filhos
aprendendo filosofia e sociologia?
Poderíamos contra-argumentar dizendo não se tratar de
incômodo, mas de uma simples análise de prioridades. A prioridade na formação
seria garantir a empregabilidade e a qualificação técnica. Nesse sentido, há de
se cortar o que é supérfluo. Por outro lado, os estudantes brasileiros são
sempre mal avaliados em disciplinas básicas, como línguas e matemática. Melhor
então focar o essencial.
No entanto,
tais argumentos não se sustentam. Limitar nossos alunos ao básico não é o
melhor caminho para levá-los a lidar com realidades complexas e em mutação,
como são nossas sociedades contemporâneas. Eles não conseguirão tomar melhores
decisões com uma formação mais limitada. Por outro lado, se seus conhecimentos
de línguas e matemática são deficitários, não é por alguma forma de “excesso”
de disciplinas, mas pela péssima qualidade de nossas escolas, pela precarização
de nossos professores (só o Estado de São Paulo perdeu 44.500 professores
apenas nos últimos dois anos) e pela ausência de cultura literária de muitas
famílias.
Nesse
sentido, há de se lembrar o que significa aprender filosofia e sociologia. O
ensino da filosofia, por exemplo, pressupõe o desenvolvimento de algumas
habilidades fundamentais. Lembremos de ao menos três: a capacidade de
constituir problemas a partir da crítica a pressupostos aparentemente
naturalizados, a capacidade de articular problemas em campos aparentemente
dispersos, desenvolvendo assim um forte pensamento de relações e quebrando a
tendência atual em isolar o pensamento em especialidades incomunicáveis. Isto
significa ser capaz, por exemplo, de compreender como questões éticas têm
relações com questões de teoria do conhecimento, de estética, de política e de
lógica, entre outras.
Por fim, e
esta é sua característica mais impressionante, o aprendizado da filosofia
pressupõe a capacidade de pensar como um outro. Lembro-me de um professor que,
ao ver muita pressa em “refutar” Descartes, olhou para mim com sua sabedoria
costumeira e disse: “Veja, não é possível ler um filósofo com luvas de boxe”.
Ou seja, é necessário saber, por um momento, pensar como um outro, até para
poder se contrapor com mais propriedade.
Bem, é isto
que alguns querem que seus filhos não aprendam. Eles sabem muito bem por que
querem isso. Temo que o verdadeiro objetivo não tenha relação alguma com o
futuro profissional de seus filhos. Temo que, no fundo, queira-se calar, de uma
vez por todas, o projeto de alguns de nossos maiores filósofos, como Condorcet,
quem dizia: “A função da educação pública é tornar o povo indócil e difícil de
governar”.
Publicado
originalmente na Folha.
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