Prof. Me. Manoel Ferreira Santos-Jr

A escola priva suas crianças da liberdade, espontaneidade e alegria que caracterizam as manifestações lúdicas que povoam as atitudes da infância. Qualquer pessoa, com o mínimo conhecimento em educação física escolar poderia endossar tal afirmação. O que proponho, portanto, é discutir as possibilidades de tornar o ambiente escolar um território livre para a presença lúdica, mesmo que de forma orientada. Faz-se necessária uma re-interpretação da concepção de lúdico, enquanto um instrumento do processo educativo ou, ainda, um fim em si mesmo.
Lúdico, enquanto meio de educar, entenda-se pela utilização de atividades prazerosas, com alto teor de motivação e inseridas em uma intencionalidade que busca a aquisição de novos conceitos, numa mudança de comportamento do aluno, representando uma aprendizagem associada aos conteúdos pré-estabelecidos pelo professor.
Numa outra visão, mais aceita, o lúdico no processo educativo, deveria ser um fim em si mesmo, ou seja, despretensioso, gratuito e liberto de qualquer obrigatoriedade ‘disciplinar’1. Neste contexto, a criança poderia demonstrar, através de atividades espontâneas e não dirigidas, toda sua essência e vigor, inerente à sua faixa etária, respeitadas, ainda, suas experiências anteriores.
O dicionário nos ensina que o Lúdico está relacionado a jogos, brinquedos, divertimentos; o que já daria uma idéia clara do que tratamos mas, vamos analisar o lúdico pela definição, poética até, de LUCKESI (1994):
          
“...O lúdico significa a experiência de ‘ir e voltar’, ‘entrar e sair’, ‘expandir e contrair’, ‘contratar e romper contratos’, o lúdico significa a construção criativa da vida enquanto ela é vivida. O lúdico é um ‘fazer o caminho enquanto se caminha’, nem se espera que ele esteja pronto, nem se considera que ele ficou pronto, este caminho criativo foi feito e esta sendo feito com a vida no seu ‘ir e vir’, no seu avançar e recuar. Mais: não há como pisar nas pegadas já feitas, pois que cada caminhante faz e fará novas pegadas. O lúdico é a vida se construindo no seu movimento.”

     Podemos, parafraseando e complementando o título do livro de GONÇALVES2, concluir que o lúdico é tudo que sentimos, pensamos, agimos e que nos proporciona prazer e satisfação, que não nos é imposto contra nossa vontade. Mas concordando com LUCKESI, MARCELLINO (1997) nos alerta para uma situação preocupante:

“A vivência do lúdico leva ao entendimento da gratuidade da alegria, da não-relação entre o prazer e o atual ordenamento institucional, que procura entorpecer o corpo, pela organização, disciplina e rotina gerando a incapacidade dos sentidos. Ao negar o componente lúdico da cultura infantil, a Escola contribui para a manutenção dessa situação domesticadora”.

Não pretendo, neste trabalho, defender nenhuma das posições ou mesmo indicar qual poderia ser apontada como mais apropriada no processo educacional, até porque tal pretensão seria deveras complicada, uma vez que, por maior que seja o número de publicações ou relatos conceituando, classificando e identificando o “‘lúdico”, olho com certa desconfiança tal iniciativa, por acreditar, assim como Santin (1987) que o lúdico não pode ser conceituado, pois, cada vez que assim fazemos, o tornamos um objeto de utilização sistematizado, como um instrumento de trabalho, qual uma equação matemática. Portanto, sem querer defini-lo, sinto a ludicidade como algo “volátil”, “mutante” na forma e essência, onde, em uma mesma atitude, é ou deixa de ser lúdica.
Neste momento, até pela brevidade que o presente artigo exige, retorno à idéia inicial, que visa legitimar a personalidade lúdica no ambiente escolar, através de uma nova concepção do papel da escola, que tem por objetivo maior a construção da criança em um adulto capaz de socializar-se, produzir e usufruir sua produção com qualidade de vida e, cada vez mais, conduzir esta tão aclamada qualidade de vida para uma longevidade possível. Fator preponderante para uma concepção adequada, ora pretendida, será entender o termo “construção da criança” como um processo contínuo, onde o “alicerce” que servirá de sustentáculo para a “edificação” do adulto almejado, nada mais é que as vivências prazerosas que a criança vai acumular em sua trajetória para a “estação” adulta.
Identificamos a fase de inserção à vida escolar como preponderante para a instauração de uma vida social agradável e naturalmente produtiva3. Lembrando que, pela primeira vez, a criança entra num mundo novo, onde os hábitos e normas são diferentes daqueles que acostumara praticar no seio familiar e, que esta criança, ao tornar-se apenas uma entre tantas outras, constantemente, encontrará nestas leis impostas pela escola, que servirão para manter a disciplina escolar, para que o professor possa avaliar e julgar o rendimento dos alunos, através de regras ortográficas, gramáticas ou cálculos matemáticos, dificuldades para poder e, confesso, nem sei se deveriam, entender.
ALVES (2002)4, critica os programas de ensino:

“Os programas são uma violência que se faz com o jeito que o corpo tem de aprender. Não admira que as crianças e adolescentes se revoltem contra aquilo que os programas os obrigam a aprender. Ainda ontem uma amiga me dizia que sua filha, de 10 anos, lhe dizia: "Mãe, por que tenho de ir à escola? As coisas que tenho de aprender não servem para nada. Que me adianta saber o que significa "oxítona"? Pra que serve esta palavra?" A menina sabia mais que aqueles que fizeram os programas”.

O autor, quando ao associar a vivência escolar com a linha de montagem de uma fábrica, questiona a impessoalidade com que é tratada a criança, sendo descaracterizada em sua individualidade e transformada em um produto que é ‘moldado’:

“As linhas de montagem denominadas escolas se organizam segundo coordenadas espaciais e temporais. As coordenadas espaciais se denominam "salas de aula". As coordenadas temporais se denominam "anos" ou "séries". Dentro dessas unidades espaço-tempo os professores realizam o processo técnico-científico de acrescentar sobre os alunos os saberes-habilidades que, juntos, irão compor o objeto final. Depois de passar por esse processo de acréscimos sucessivos - à semelhança do que acontece com os "objetos originais" na linha de montagem da fábrica - o objeto original que entrou na linha de montagem chamada escola (naquele momento ele chamava "criança") perdeu totalmente a visibilidade e se revela, então, como um simples suporte para os saberes-habilidades que a ele foram acrescentados durante o processo. A criança está, finalmente formada, isso é, transformada num produto igual a milhares de outros. ISO-12.000: está formada, isto é, de acordo com a forma. É mercadoria espiritual que pode entrar no mercado de trabalho”.

Ao observar o processo de evolução e adaptação às mudança de comportamento da sociedade em geral, através dos tempos, notamos a estagnação da instituição Escola, que, dentre tantas outras Instituições, estaria entre as que menor numero de inovações sofrera.
Não é necessária muita perspicácia para identificar no texto de FOUCAULT5 (1987), sobre o controle das atividades, situações que, apesar de datarem do século XVII, visando manter a disciplina e, com isto, melhorar a eficácia e a produtividade6, são praticadas até hoje em nossas escolas. Foucault identificou cinco itens fundamentais para manter a ordem e o rendimento em escolas, exércitos, fábricas, hospitais e, principalmente, nas ordens religiosas (mestres em disciplinas):

Horário –
“À ultima pancada do relógio, um aluno baterá o sino, e, ao primeiro toque , todos os alunos se porão de joelhos, com os braços cruzados e olhos baixos. Terminada a oração, o professor dará um sinal para os alunos se levantarem, um segundo para saudarem Cristo, e o terceiro para sentarem”.

Formação –
“ Acostumar os soldados a marchar por fila ou em batalhão, a marchar na cadencia do tambor. E, para isso, começar com o pé direito a fim de que toda tropa esteja levantando o mesmo pé ao mesmo tempo”.

Posição do Corpo –
“Uma boa caligrafia, [...] supõe-se uma ginástica onde deve-se manter o corpo direito, um pouco voltado e solto do lado esquerdo, e algo inclinado para a frente, de maneira que, estando o cotovelo pausado na mesa [...] O mestre ensinará aos escolares a postura que estes devem manter os escravos, e a corrigirá seja por sinal seja de outra maneira, quando dela se afastarem”.

A Articulação Corpo-Objeto –
“Leve a arma á frente. Em três tempos. Levante-se o fuzil com a mão direita, aproximando-o do corpo para mantê-lo perpendicularmente em frente ao joelho direito, a ponta do cano à altura do olho, [...]”.

A Utilização Exaustiva –
“[...] é proibido perder um tempo que é contado por Deus e pago pelos homens; o horário devia conjurar o perigo de desperdiçar tempo –erro moral e desonestidade econômica”.

Evidente que, guardadas as devidas proporções, presenciamos situações análogas, ainda hoje, em muitas de nossas escolas, ainda que “travestidas” de um discurso inovador, fundamentados nas concepções da Escola Nova ou Construtivista, sua prática não corresponde à teoria anunciada. Vejamos:

“No entanto, é na escola o lugar onde mais se ouve frases do tipo: ‘agora não é hora de brincar!’; ‘estudar não é brincadeira’; ‘essas crianças só pensam em brincar!’ Como se a des-ordem inerente às brincadeiras se opusesse radicalmente à ordem necessária ao aprender e ensinar!” ROSA (1998 p.90).

Volto a ressaltar a necessidade de realizar esta “transmutação social” respeitando o histórico de vida destes alunos, suas vivências e suas características próprias, peculiares aos estágios de desenvolvimento atual. Importante lembrar FREIRE (1997) ao observar a criança, que “sua marca característica é a intensidade da atividade motora e a fantasia”, obviamente que, numa análise mais radical, podemos nos reportar à PIAGET (1982) que em sua classificação das fases do desenvolvimento cognitivo da criança, identificou estes alunos (6-7 anos) como estando no início da Fase Operatório Concreto, onde citamos algumas características:
·         Predominância do pensamento concreto
·         Início da socialização
·         Interesse por jogos coletivos
·         Competitividade, porém com aceitação apenas pela vitória etc.
Isto posto, pergunto: Porque a Escola “fecha os olhos” para estes dados? Por que sujeitar as crianças à sua vontade, desconsiderando as experiências, índole e desejos dos alunos?
Considerando, ainda, que a fase de ingresso escolar é a etapa principal da socialização e, que, se esta ocorre de maneira agressiva, traumática até, esta criança sofrerá por muito tempo, talvez para sempre, poderíamos inferir que, possivelmente, sua inserção no convívio adulto, tornar-se-á restrito e limitado por situações análogas àquelas vivenciadas na infância.
Cabe, portanto, ao professor, não apenas como um condutor do processo de aquisição do conhecimento e facilitador das descobertas e relações interpessoais, mas, também, enquanto objeto de transferência e identificação da figura familiar, tornar esta experiência suave e prazerosa, transformando a ida à escola em algo esperado e produtivo (já definido). Deve-se priorizar, além dos conteúdos pré-estabelecidos por um programa a ser cumprido, as necessidades imediatas destas crianças.
Uma das perguntas mais freqüentes às crianças estabelece a preocupação com o “vir a ser”, ou seja: ‘o que você vai ser quando crescer?’ Questão que denota a negação do valor improdutivo da criança e preocupação com a formação7 delas. Exemplo apropriado para a afirmação acima podemos encontrar em ALVES (1984) com a crônica Da inutilidade da Infância8, muito bem sintetizada por FREIRE (1997):

“...um pai, todo orgulhoso, pergunta ao filho o que ele vai ser quando crescer. A criança responde que vai ser médico, um dos rótulos respeitáveis que o pai admite (poderia também ser engenheiro, advogado, diplomata...). já outro pai, que tem um filho leucêmico, diz-lhe que ‘se tudo correr bem, iremos ao jardim zoológico no próximo domingo...’ Este pai não pode fazer perguntas sobre o futuro simplesmente porque seu filho não tem futuro.. por ironia, a segunda criança acaba vivendo com mais intensidade cada dia de sua vida (que deverá ser curta), ao passo que a primeira apenas prepara-se para viver um futuro distante, incerto, irreal... um futuro que inventaram para ela.”

Após estas considerações, resta observar um fato que há muito me incomoda: ao ter claro a necessidade de respeitar e oportunizar situações lúdicas aos alunos, não seria a Educação Física, o campo mais fértil para que esta educação lúdica ocorra?
SNYDERS (1993) pode auxiliar neste questionamento ao afirmar:

“Quando eu induzo alunos a falar sobre a alegria na escola, alguns recordam a alegria das algazarras, a alegria do companheirismo. Muitos transpõem para a escola alegrias vindas de fora, como festas combinadas na escola ou excursões organizadas pela escola, mas todas com o objetivo preciso de sair da escola”.

Algazarras, companheirismo, atividades fora da escola. Impossível não identificar a presença e atuação da educação física com os termos adjetivados por Snyders. Não raro, o professor de educação física é citado pelos alunos como o que possibilita maior abertura, maior companheirismo e alegria em suas aulas. Tudo isto poderia, numa análise simplista, responder positivamente a questão proposta anteriormente, mas, apesar do grande valor de tais atitudes, não garante o ensino, a descoberta do corpo físico, cultural, social e, principalmente histórico daqueles alunos, pois a educação física antes de ser uma disciplina pedagógica, é, sobretudo, um fenômeno humano, envolvendo toda a vivência cultural de cada aluno.

“A corporeidade é, existe e por meio da cultura ela possui significado. Daí a constatação de que a relação corpo-educação, por intermédio da aprendizagem, significa aprendizagem de cultura - dando ênfase aos sentidos dos acontecimentos e à aprendizagem da história – ressaltando aqui a relevância das ações humanas. Corpo que se educa é corpo humano que aprende a fazer historia fazendo cultura”. (MOREIRA, 1995).

O que clamo, neste momento, é a utilização consciente da educação física como ‘ferramenta’ profícua para a ‘construção’ de adultos, tal qual citado no início deste artigo. O educador (todos) deve estar preparado e atento para não exigir da criança respostas ou ações que ela ainda não esta preparada; ao contrário, o professor deve criar oportunidades que estimulem o desenvolvimento dessas crianças, de forma que consigam pensar, relacionar, refletir e propor soluções a quaisquer situações que lhe sejam apresentadas.

“Numa situação de conflito (que deve ser proposta pelo professor), as perturbações geradas podem levar o aluno a se perguntar sobre as ocorrências, especialmente os erros, se quiser corrigi-los, e os acertos, se quiser mantê-los. Essas dúvidas geram a boa pergunta pedagógica, isto é, a pergunta que o aluno faz para si mesmo e que tem o poder de levar para o nível da reflexão aquilo que era ação exterior. No plano da reflexão a ação pode ser percebida no que tem de generalizável, no que tem de coordenação de ações, de forma a chegar ao nível da consciência naquilo que a ação tem de mais geral (por isso generalizável)”.FREIRE (2002).

Gostaria, para finalizar, de propor uma reflexão de nossa práxis, buscando as entender que nenhuma proposta faz sentido, sem que tenhamos como foco principal, nossas crianças, que, independente das condições materiais, pedagógicas, didáticas ou mesmo com nossas regras coercivas ou libertadoras, sempre irão aprender, sempre irão sorrir, sempre estarão alegres, pois isso é um patrimônio que lhes pertence e, ninguém poderá priva-las. Então, por que não favorecer para que possam aprender mais, sorrir mais e serem mais felizes? Tenho certeza que isto nos tornará muito mais felizes também.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

ALVES, Rubem. Conversas com quem gosta de ensinar. São Paulo: Cortez, 1991.
___________. A escola da ponte. In: Aprendiz. Disponível em . Acesso: 10 abr. 2002.
AZENHA, Maria da Graça. Construtivismo – de Piaget a Emília Ferreiro. 7ed. São Paulo: Ática. 1999.
FOUCAULT, M. vigiar e punir: história das violências das prisões. 11ed. Petrópolis: Vozes, 1994.
FREIRE. João Batista. Educação de corpo inteiro. São Paulo, Scipione, 1989.
___________. Métodos de confinamento e engorda (como fazer render mais porcos, galinhas, crianças...). In MOREIRA, W. W. (org.). Educação física & esportes: perspectivas para o século XXI. Campinas: Papirus, 1993.
___________. Esboço para organização de um currículo em uma escola. In: De corpo inteiro. Disponível em . Acesso: 10 abr. 2002.
HARPER, B. et alli. Cuidado, escola! Desigualdade, domesticação e algumas saídas. 35 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
LUCKESI, C. C. O lúdico na prática educativa. Rio de Janeiro: Tecnologia Educacional. p.119-20, 1994.
MARCELLINO, Nelson C. Pedagogia da animação. 2ed. Campinas: Papirus, 1997.
MOREIRA, Wagner Wey. Perspectivas da educação motora na escola. In: De Marco, Ademir (org.). Pensando a educação motora. Campinas: Papirus, 1995.
PIAGET, Jean. A formação do símbolo na criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
___________. Para onde vai a educação? Rio de Janeiro: José Olympio. 1984.
ROSA, Sanny S. Brincar, conhecer, ensinar. São Paulo: Cortez, 1998.
SANTIN, Silvino. Educação Física: uma abordagem filosófica da corporeidade. Ijuí: Unijuí, 1987.
SANTOS-JR, Manoel Ferreira. A festa do lúdico no ensino fundamental – concepções de duas categorias. Piracicaba: 2002. Dissertação (mestrado em educação física). FACEF-UNIMEP
SNYDERS, Georges. Alunos felizes: reflexão sobre a alegria n a escola a partir de textos literários. 2ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.