O QUE RESTA DE AUSCHWITZ (Capítulo I. A Testemunha)

Giorgio Agamben é um filósofo italiano (Roma, 1942) que tem a sua formação inicial no campo do Direito, mas transita entre as dimensões do Direito, da Ética, da Estética, da Literatura, da Teologia-política, e, por excelência, da Política. Em linhas gerais, cinco são as tensões presentes na obras de Agamben: o problema da biopolítica; o problema da potência do pensamento; homo saccer; o problema do Estado de exceção; e a crise da razão na modernidade.


APRESENTAÇÃO (de Selvino Assmann)

A obra O que resta de Auschwitz retoma a problemática das obras Homo sacer (1995) e Mezzi senza fine (1996), em particular a distinção entre vida nua[1] (zoé) e forma de vida propriamente humana[2] (bios).

O que resta de Auschwitz não deve ser visto como mais um livro histórico sobre a crueldade nazista, onde se encontra depoimentos comoventes e que levam o leitor a novamente se indignar com a tamanha crueldade do nazismo, no contraponto mesmo desta leitura, o nosso autor vai tentar discutir o “resto” de Auschwitz, o “resto” que não se encera com o julgamento pelo Direito dos nazistas. Há nos campos de concentração de Auschwitz um “resto”, que não finda com a condenação dos nazistas.
Este “resto” esta estreitamente ligado ao testemunho do Muçulmano[3], o qual, por mais que desejar-se-ia (ou não), nos foi perdido, pela incapacidade mesmo do testemunho. Para tanto, o primeiro capítulo da obra, vai se debruçar sobre este problema.
Na esteira do problema do testemunho Primo Levi coloca:

(…), não somos nós, os sobreviventes, as autênticas testemunhas. (…). Nós, sobreviventes, somos uma minoria anômala, (…): somos aqueles que, por prevaricação, habilidade ou sorte[4], não tocamos o fundo. Quem o fez, (…), não voltou para contar, ou voltou mudo; mas eles, os “muçulmanos”, os que submergiram – são eles as testemunhas integrais, cujo depoimento teria significado geral.

Em última instância, o problema de Agamben é discutir as implicâncias éticas dos campos de concentração de Auschwitz, ou ainda, na sua formulação, “fincar cá e lá algumas estacas que eventualmente poderão orientar os futuros cartógrafos da nova terra ética”.


A TESTEMUNHA


a)    Não-humano e o mulçumanos

Agamben lançará mão de uma distinção de dois tipos de homens presentes nos campos de concentração, o primeiro grupo, que é a exceção, são os sobreviventes, e há um segundo grupo, os mulçumanos, que são a regra. Essa distinção tem haver com as condições físicas e psicológicas de cada um, os primeiros, por mais debilitados que estivessem, ainda conservavam traços “humanos”. Ou seja, poderia vê-los conversando, andando e trabalho, já os muçulmanos eram homens chamados de não-humanos, porque se encontravam em um certo estado de anestesia e apatia com o mundo e com o outro, que os tirava da condição de humanos, lançando eles num estaco suspenso, distante da humanidade.


b)   O Direito não encerra Auschwitz

Agamben coloca o equivoco comumente feito entre as categorias da éticas e as categorias jurídicas, as quais vêem na justiça um manto ético, e essa confusão fez com que por muito tempo, acreditar-se que os problemas advindo dos campos de concentração haviam findando, não obstante, o nosso autor discorda dessa leitura e tenta observar este “resto” de Auschwitz.


c)    Niilismo ético e a zona cinzenta - Fim dos projetos éticos do ocidente

Agamben vai desenvolver o conceito de zona cinzenta, na qual, em linhas gerais seria o locus de normalidade, onde tudo, por mais cruel e animalizaste for, torna-se comum.

(…), Levi relata que uma testemunha, Miklos Nyizli, um dos poucos sobreviventes do último esquadrão especial de Auschwitz, contou que assistiu, durante uma pausa do “trabalho”, a um jogo de futebol entre SS e representantes do SonderKommando.

[…] à partida assistem outros soldados SS e o resto do Esquadrão, torcendo, apostando, aplaudindo, encorajando os jogadores, como se a partida se desenrolasse não diante das portas do inferno, mas num campo de aldeia.

A partida de futebol que aconteceu nos campos de concentração ao olhos de Agamben é a imagem mais emblemática da zona cinzenta, onde a Ética é suspensa, e nenhum fundamento sobrevive.


d)   A Lacuna do testemunho / Impossibilidade de testemunhar

Agamben entende que o testemunho do sobrevivente traz consigo uma lacuna, lacuna esta que tira a validade daquele que testemunha. Tudo o que os sobreviventes falarem, por mais honestos que forem eu suas falas, residirá nelas um ponto de interrogação. Dito isso, na medida em que os testemunhos, são dos sobreviventes, que são a exceção, sobreviverão por predicação, habilidade ou sorte, a regra são os mulçumanos, e estes não podem mais falar, perderam a faculdade de fala e pereceram nos campos de concentração.
Levi apud Agamben, aponta:

(…), não somos nós, os sobreviventes, as autênticas testemunhas. (…). Nós, sobreviventes, somos uma minoria anômala, além de exígua: somos aqueles que, por prevaricação, habilidade ou sorte, não tocamos o fundo. Quem o fez, quem fitou górgona, não voltou para contar, ou voltou mudo; mas são eles, os mulçumanos, os que submergiram – são eles testemunhas integrais, cujo depoimento teria significado geral[5].

Para Levi, o único testemunho autêntico é o do mulçumano, porque foi ele que tocou o fundo do poço, foi ele quem fitou Górgona. Do que se segue a impossibilidade do testemunho dos sobreviventes.
O resto de Auschwitz é a impossibilidade do testemunho:

Os que sobreviveram aquela experiência nunca saberão o que ela foi; os que a viveram nunca o dirão; realmente não, não até o fundo. O passado pertence aos mortos…[6]


Bibliografia

ARENDT, Hannah. A condição humana. 5ª ed. Trad. Roberto Raposo. RJ: Forense Universitária, 1991.
AGAMBEM, Giorgio. O que resta de Auschwitz (Home Sacer III). Trad. Selvino J. Assmann. SP: Boitempo, 2008, p. 25 – 48.


[1] Vida Nua (zoé): a vida nua consiste em linhas gerais na ausência da dimensão da política e o cuidado único e exclusivo com o corpo. - zoè – corpo – vida privada – necessidade
[2] Vida propriamente humana (bios): consiste na vida política, dedicada a ação na polis e ao debate ético no centro da cidade. bios – política – vida pública - liberdade
[3] O Muçulmano aqui não deve ser lido enquanto aquele que é adepto da religião Mulçumana, mas, enquanto o Judeu que definhou no campo de concentração, a ponto de perder todas as faculdades de humano, bem como, a ponto do Primo Levi perguntar-se, É isto um homem?
[4] Esta implícito no termo sorte, a total ausência de ordem, de categorias, de fundamentos para matar os judeus. Estes eram mortos alheatoriamente.
[5] Levi, apudt Agamben, p. 42.
[6] Wiesel  Apud Agamben p. 42.

Um comentário:

  1. Caros
    Muito interessante, apenas quero sugerir uma correção no texto, pois há 2 erros em um só na frase "o qual, por mais que desejar-se-ia (ou não),..."
    1. O correto é "por mais que SE deseje (ou nao), - o tempo do verbo está errado.
    2. Mesmo que fosse o tempo usado no texto, ainda assim, seria: "por mais que se desejaria", pois o QUE atrai o SE. Porém, este não é o tempo correto, e sim, a alternativa 1.
    Espero estar contribuindo. Abs.

    ResponderExcluir