A linguagem no romance Vidas Secas de Graciliano Ramos



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A linguagem no romance Vidas Secas de Graciliano Ramos

       No romance Vidas Secas Graciliano Ramos narra a vida desgraçada do vaqueiro Fabiano e da sua família no agreste nordestino. Fabiano, Sinhá Vitória, menino mais novo e menino mais velho, além da cachorra Baleia e do papagaio, são personagens maltratados pelo sol, de inteligência mesquinha e ordinariamente mudos. A palavra e a linguagem lhes são estranhas, os poucos diálogos no romance são curtos, objetivos e respondem a necessidades concretas, a exemplo da primeira cena aonde Fabiano, em tom ríspido ordena que o menino mais velho, que chora sentado no chão, ande: – Anda condenado do diabo! Anda excomungado!
       Dentre os personagens, o papagaio da família, o qual não ocupa mais que algumas passagens na narrativa, se destaca por ser mudo, não exprimia o pobre animal mais que gritos guturais e desconexos. Aparentemente a ave não tinha nenhum problema que impedia-lhe de desenvolver a faculdade da fala, ela apenas não aprendera, ninguém a ensinou.
       O menino mais novo e o menino mais velho, que de ordinário não tinham nomes, em alguns momentos, admirados com as palavras, ousaram a explorar o mundo das letras, mas foram interpelados com olhares de reprovação e maus-tratos. Num certo momento o menino mais velho escutou Sinhá Terta, senhora amiga da família, usando o termo “inferno”. A palavra desconhecida lhe aguça a curiosidade e o levou, com alguma reserva de medo, a perguntar ao seu pai qual o significado da palavra - inútil, não obteve qualquer resposta. Sedento pela curiosidade procura a mãe, interpelou-a pelo teor da palavra, não obteve mais que informações genéricas. Sinha Vitória relacionou “inferno” com qualquer coisa com espetos quentes e fogueiras. Insatisfeito, solicitou mais informações, exigiu descrição acurada. Sinhá Vitória se irritou, insulta-lhe e aplica-lhe cocorotes.
       A família seguia o exemplo de Fabiano, um bicho satisfeito com a ignorância, consciente que em meio a seca as letras são coisas desnecessária. Qual serventia tinha a palavra? Nenhuma, coisa inútil. Ciência de valia é a da lida com os bichos e com a seca. Quando a seca chegar de nada adiantará o conhecimento dos livros e das histórias de Tomás da Bolandeira, se estrepará igual aos bichos como ele.
       Mesmo sendo um bicho, Fabiano admirava as palavras. Em alguns momentos ensaiava repetir palavras difíceis, compridas, entretanto logo se apercebia de sua tolice. Sujeito como ele não havia nascido para falar. Porém, se um dia conseguisse arranjar seus sentimentos e pudesse exprimi-los na forma de palavras, vociferaria acusações contra o soldado amarelo, símbolo da autoridade do homem branco da cidade.
       Se as palavras lhe inspiravam admiração, inspiravam também a desconfiança. As palavras eram perigosas e os homens da cidade a usavam como instrumento para lhe lograr nos negócios. Quando ouviu o contador falar em juros e prazos, percebeu ser vítima de logro, mas não podia protestar, restava-lhe encolher os ombros e esperar que a extorsão não lhe levasse tudo. Embora fosse um sujeito de substância e muque, pensava pouco e obedecia sempre.
       A condição de bicho não desagradava Fabiano. Sentia-se desconfortável quando estava na cidade aonde os homens usavam as palavras. Lá ele era vítima de riso e logro. Mas quando estava no sertão, com os pés no barro e rodeado de mandacaru, então estava em sua morada, virava um bicho com orgulho.
       Fabiano, em certa oportunidade, quando se encontrou só, entoou a voz e exclamou seu pertencimento a humanidade: ─ Fabiano, você é um homem! Temendo ser visto por alguém, recua, era preciso corrigir: ─ Você é um bicho, Fabiano! Um bicho! Conquanto, tal correção não tinha tons negativos, ao contrário, afirmava sua animalidade em uma inflexão puramente positiva, pois era um bicho que conseguia vencer dificuldades, era um bicho forte, gordo, fumando o seu próprio cigarro de palha.
       A relação que Fabiano estabelece com a palavra revela a sua relação com a própria humanidade. A palavra é o marco referencia, quando se aproxima dela, se aproxima da humanidade, quando a nega, nega igualmente a sua humanidade. Esta relação com a palavra e a humanidade é perpassada por um duplo movimento, num deles de admiração, desejando dela participar, ensaiando palavras difíceis e longas, mas no movimento seguinte repelindo-a, por desconfiança e medo, pois ele se considerava um bicho, um animal bruto, incapaz de ter idéias. A humanidade só poderia ser objeto de seu desejo quando a seca acabar e tudo “andar direito”.

Paulo Flavio de Andrade
Acadêmico de Ciências Sociais da Universidade do Contestado – UnC


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