
Amanda Travincas, autora de tese premiada sobre a liberdade acadêmica, critica o "escola sem partido".
“Garantir sala de aula livre não é limitar a expressão do professor, mas fazê-la coexistir com a do aluno”
Nos últimos anos, iniciativas inspiradas no projeto Escola Sem Partido, cujo objetivo é "eliminar a doutrinação ideológica nas escolas", tem surgido em vários Estados e municípios brasileiros.
Alagoas foi o primeiro a aprovar uma lei do tipo, já em 2015, para
instituir o programa Escola Livre, posteriormente suspenso pelo Supremo Tribunal Federal
(STF). Ele proibia qualquer conduta por parte do corpo docente ou da
administração escolar que "imponha ou induza aos alunos opiniões
político-partidárias, religiosa ou filosófica". O município de São
Paulo, por sua vez, está com um projeto pronto para ser votado
na Câmara, que também afirma que o professor da rede pública municipal
deverá se abster de "introduzir, em disciplina obrigatória, conteúdos
que possam estar em conflito com as convicções morais dos estudantes ou
de seus pais".
A
aprovação deste tipo de legislação é danosa para a democracia, na
opinião da professora de direito Amanda Costa Thomé Travincas, autora da
tese de doutorado
"A tutela jurídica da liberdade acadêmica no Brasil: a liberdade de
ensinar e seus limites", defendida na PUC do Rio Grande do Sul e
vencedora no final do ano passado do Grande Prêmio Capes de Tese, que
contempla as melhores pesquisas de doutorado no país. Em seu trabalho,
focado no ensino superior, ela discute os motivos da existência da
liberdade de ensinar ser garantida aos professores e qual o limite de
atuação do professor na sala de aula.
Pergunta. No que consiste a liberdade de ensinar?
Resposta. Liberdade de ensinar é um direito
que está relacionado a uma outra liberdade mais ampla, que é a
liberdade acadêmica ou de cátedra. Está relacionada à autonomia do
professor de gerir a sala de aula, ou seja, de deliberar sobre o
conteúdo que vai ensinar e sobre os métodos que utilizará para abordagem
deste conteúdo. Quando o professor é contratado por uma instituição,
ele recebe um programa de ensino que está afinado a um projeto
pedagógico institucional e tem a incumbência de exercer a sua profissão.
Mas esse ato de contratação não é, ao mesmo tempo, um ato de renúncia
de sua autonomia enquanto sujeito crítico a respeito de assuntos
diversos. No momento em que um professor se torna um funcionário
institucional, ele tem a incumbência de discutir opiniões controvertidas
na sala de aula, de utilizar metodologia para isso, mas continua tendo
suas opções políticas, religiosas, de cunho econômico etc. Na sala de
aula, ele exprime determinada opinião sobre determinado assunto porque
tem um dever profissional de fazer isso, é contratado e pago para isso. É
diferente da gente que, em qualquer circunstância, expressarmos nossa
opinião sobre qualquer assunto. Além disso, ela é um direito
fundamental.
P. Como assim?
R. Na Constituição há um conjunto de normas
que prevê os chamados direitos fundamentais. Mas a liberdade de ensinar
não está prevista neles. Por isso me empenhei na tese em explicar que
ela é um direito fundamental apesar de a Assembleia Constituinte não
tê-la posto dentro deste grupo. Argumento isso relacionando a liberdade
de ensinar ao principio democrático, que é o princípio central da nossa
Constituição. Entendo que a liberdade de ensinar merece uma proteção
diferenciada porque é uma condição para qualificar o nosso debate
democrático. Ou seja, se alunos e professores convivem em instituições
de ensino, em um ambiente de liberdade, em que o aluno escuta não só
posições que corroborem com a sua, mas também posições diversas, isso
otimiza a formação de cidadãos para a participação democrática.
P. E por que o professor deve emitir sua posição na sala?
R. Porque é uma condição para a
qualificação do debate democrático. A apresentação de posições e a
contraposição delas conflagra a sala de aula como um espaço democrático.
Uma democracia não equivale a um conjunto de consensos. Ela é
representada pela coexistência entre posições distintas, ou seja, pelo
dissenso. O dissenso é uma condição da democracia. Se um professor
exprime sua posição e ela é posta em xeque, pode ser contraditada, não
só concretizamos o princípio da democracia como também contribuímos para
o próprio avanço da ciência, que só se dá por contraposição. O avanço
da ciência depende de questionamentos a posições consolidadas.
P. Qual a diferença entre o professor emitir uma opinião e doutrinar?
R. Doutrinação e ensino são coisas
dicotômicas. Ou se doutrina ou se ensina. Nenhuma expressão é por si só
doutrinação ou ensino. O que caracteriza algo como doutrinação e não
ensino é a manifestação de um sujeito somada à impossibilidade de
contraposição por parte de outro. Acontece quando o professor exprime
uma posição e impede o aluno de questioná-lo, de considerar modelos
alternativos. Já o ensino acontece quando o professor emite uma posição,
e não só pode, como deve fazê-lo, mas reconhece a sala de aula como uma
arena propícia pra discutir aquela posição que ele apresentou.
P. Como você avalia o movimento Escola Sem Partido?
R. O projeto parte de uma premissa
equivocada, que é a possibilidade de filtrar o discurso do professor
como se ele fosse apenas um instrumento de repasse do programa
disciplinar. E isso compromete fortemente a sua condição de sujeito. Não
é possível neutralizar até o marco zero o discurso de qualquer pessoa
que seja. E não poderia ser diferente em relação ao professor. O
professor embora tenha um compromisso institucional e público no
exercício da sua profissão, não deixa de ser uma coisa que é prévia a
sua condição de professor, que a condição de cidadão, de um sujeito.
Qualquer sujeito que emite uma expressão, a emite a partir de seu local
de fala, das suas experiências, das suas preferências. Por isso, a
estratégia do Escola Sem partido é equivocada. Para garantir uma sala de
aula livre o caminho não é limitar a paleta de expressões que pode ser
proferida pelos professores. A estratégia é fazer coexistir a expressão
do professor com a expressão do aluno. Ou seja, reconhecer o aluno como
um sujeito autônomo, não como uma tábula rasa que absolverá qualquer
expressão emanada do professor. Este modelo de educação é um modelo
absolutamente retrógrado. Este mesmo discurso, inclusive, já existia em
1933.
P. Como assim?
R. Esta justificativa do Escola Sem
Partido, que é a de que o professor não pode afrontar as convicções
pessoais de cada aluno e de seus pais, foi, curiosamente, o mesmo
argumento usado por parlamentares constituintes em 1933, quando pela
primeira vez uma Assembleia Constituinte discutiu liberdade de ensinar. A
posição deste bloco não vingou e, pela primeira vez, em 1934, a
liberdade de ensinar foi prevista em uma Constituição brasileira. A
discussão foi vencida em um contexto de consolidação de um Estado
democrático muito mais precário do que o que a gente tem hoje. Hoje
nossa democracia é considerada jovem, mas temos conquistas democráticas bem grandes. É curioso que isso venha a pauta novamente.
P. Quais as consequências que você imagina que a aprovação destas legislações possam ter na sala de aula?
R. Acho que as salas de aula serão espaços
de absoluto temor. Para que de alguma forma a proposta do Escola Sem
Partido seja efetiva seria preciso pensar em instrumentos de
fiscalização dos professores. De sorte que não só se reparasse
judicialmente alunos que se sentissem ofendidos pela manifestação de
professores como também se prevenisse a ocorrência destas manifestações.
A sala de aula teria que ser vigiada, como foram vigiadas as salas das
instituições de ensino superior nos anos 60 e 70 no Brasil. É uma neoditadura
que faria com que nós professores tenhamos que medir as nossas palavras
quando lecionamos algo. A probabilidade de proliferações de demandas
judiciais seria imensa. Porque quando eu manifesto uma posição em sala
de aula eu não sei o que vai ofender o aluno. Se uma lei diz que eu não
posso ferir a convicção do meu aluno, em uma sala de aula em que eu
tenho pelo menos 50 alunos com convicções completamente diferentes entre
si, a probabilidade de ofender alguém é altíssima.
P. Mesmo se o professor fosse um robozinho que lesse tudo exatamente como está nos livros e seguisse à risca o currículo?
R. Claro. Porque inclusive os próprios
livros e os currículos imprimem posições subjetivas de alguém. Tanto é
que há uma eterna guerra sobre os livros de história do ensino
fundamental, todo o argumento de que são livros feitos por esquerdistas.
Então, agora o alvo são os professores, depois os livros e depois,
talvez, o Ministério da Educação, que é quem decide as diretrizes curriculares mínimas. Porque é claro que esta decisão também imprime posições subjetivas.
P. Há limites e restrições à liberdade de ensinar que sejam legítimos?
R. Uma coisa importante a deixar claro é
que liberdade não equivalente à anomia, ou seja, não é o mesmo que a
ausência de regras. Poder exercer uma liberdade, como a liberdade
acadêmica, não quer dizer que nós professores não estejamos submetidos a
determinadas regras. São estas regras que impõem limites à liberdade de
ensinar. Por exemplo: eu sou professora do curso de direito, recebo uma
ementa e programa da disciplina que leciono e não posso optar por não
lecionar este programa e lecionar outro. Ou excluir conteúdos dela. Este
é um limite legitimo à liberdade de ensinar.
P. Há casos em que isso acontece?
R. Não conheço casos que vieram a público.
Mas estando em sala a gente vê que isso é muito comum, quase
corriqueiro. Compreender que uma determinada abordagem não é a melhor e
excluí-la. Por exemplo: o professor de direito excluir conteúdos sobre
Marx porque tem uma filiação partidária distinta.
P. Temos visto muitos casos de conflitos em ambientes acadêmicos recentemente. A situação está piorando ou há mais publicidade sobre o tema?
R. Não conseguiria afirmar que a situação
está piorando. Eu penso que os casos estão vindo mais à tona e o nosso
momento político, econômico e institucional fomenta a ocorrência desses
tipos de caso. Nestes momentos de crise é que as posições se firmam e as
contraposições também. Isso não é diferente na universidade, que é um
espaço onde discussões desta natureza acontecem. O momento é propício
para o exercício da liberdade e, por isso, também um momento em que a
tendência a violações a essa liberdade é maior. Comparativamente, os
debates sobre a liberdade acadêmica nos Estados Unidos, onde esta
discussão é bem mais antiga do que no Brasil, aumentaram especialmente
após o 11 de setembro.
Havia uma crise ali também sobre segurança nacional, terrorismo,
religião etc. e isso exacerbou também a discussão sobre a liberdade
acadêmica no país. Penso que nestes momentos de crise elas são propícias
e isso ficou mais evidente no Brasil agora porque as circunstâncias
externas à universidade favorecem isso.
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/05/politica/1515162915_230395.html
Acesso: 30 jan. 2018.
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