Artigo publicado
originalmente no Jornal Correio do Norte, Opinião, 2-2, 13 jun. 2014.
Com alguma reserva de dúvidas, é possível afirmar que o
problema central das reflexões do filme Hannah Arendt e por extensão, do
julgamento do Tenente-Coronel Karl Adolf Eichmann seja a pergunta do motivo que
levam as pessoas a fazerem o mal, pois as explicações que a tradição filosófica
e teológica sobre o objeto nos oferecem não conseguem comportar o caso de
Eichmann. A tradição filosófica e teológica entendia o mal como: a) resultado
do pecado: quando os homens passam a ser habitados pelo mal, de tal forma que
quem perpetra o mal, não é mais o homem, mais o mal que lhe habita; b) fraqueza
de resistir: nos casos em que os homens, em vez de agir segundo as leis morais
conhecidas cedem as tentações do amor próprio e das apetições sensíveis; ou
simplesmente, c) ignorância: na célebre afirmação socrática de que os homens só
fazem o mal por desconhecer o bem e a verdade.
Quando Arendt vai para Jerusalém cobrir o julgamento de
Eichmann, ela tem a expectativa de encontrar um agente da SS com um perfil
ameaçador, espera encontrar um alemão postado que esbraveja em defesa do “Reich
de Mil Anos”. Quando ela tem Eichmann em sua frente, essa figura violenta se desfaz,
ela encontra um sujeito ordinariamente comum, desprovido de qualquer fanatismo
político, desprovido de qualquer traços de sadismo ou alguma psicopatologia.
Era um sujeito –insisto- ordinariamente comum que orquestrou e operacionalizou
a Solução Final que levou a termo, de forma brutal, a vida de milhares de
judeus.
A figura pintada com corres fortes e aguda pela comunidade
judaica não existia, Arendt tinha à sua frente um sujeito “terrível” e
“horrivelmente” normal, um burocrata que cumpriu com algum empenho e zelo a sua
função. Um sujeito que apenas seguiu ordens e falava de seu trabalho a exemplo
de um operário que após um dia exaustivo de trabalho chega em casa e fala para
sua esposa o que fez, a diferença que um operário diria: – Hoje o gerente do meu
setor me felicitou por eu ter imprimido um ritmo tal que me permitiu fazer
cinco cadeiras por hora. Por sua vez, Eichmann diria com a mesma tranqüilidade
a sua esposa: – Hoje o Führer me comprimento por eu ter implementado a Solução
Final de tal forma que me permitiu intensificar o ritmo da limpeza étnica em
30%. E ambos, Eichmann e o operário, vão dormir à noite com a mesma serenidade.
O mal, entendido como a “intenção de causar dor ou
sofrimento” ao outro não se aplica a Eichmann, ele não tinha, subjetivamente,
qualquer interesse no suplício dos judeus. Neste sentido, precisamos lembrar de
Primo Lévi, quando relata que muitos soldados da SS, quando chegavam aos campos
de concentração pela primeira vez, tratavam os judeus de forma amigável,
dispensando-lhes cordialidades como “bom dia” e “boa noite”, ou ainda, em outro
caso em que um soldado, ao ver que uma judia teve um filho, lhe estende um
pedaço de chocolate. Arendt percebeu uma forma de mal em que as pessoas que o
cometem não são per se más, não possuem qualquer fanatismo ideológico, não
dispõem de qualquer traço sádico ou psicopatológico que os levariam a perpetrar
o mal. Ela se viu diante da necessidade de criar um novo conceito, desta forma
ela vai cunhar a “banalidade do mal”, desvelando assim um tipo de mal marcado
pela superficialidade e indiferença do sujeito que o pratica.
Para entendermos a “banalidade do mal” precisamos entender
dois elementos que se completam: 1º) a supressão do indivíduo pelo
totalitarismo; e, 2º) a incapacidade dos indivíduos de refletir e assumir a
responsabilidade pelos seus atos.
Em relação ao primeiro elemento, faz-se necessário
contextualizar a ascensão do projeto nazista, que, em meio a crise política, a
crise econômica e ao atomismo do individuo, o partido Nacional-Socialista
Alemão oferece aos alemães um sentido para suas vidas, algo em nome do qual o
seu eu é suprimido por uma causa maior. Neste cenário, Hitler se torna o líder
da comunidade nazista que conduzirá a raça ariana a sua intensificação, e
Eichmann, é seu oposto, o vassalo, desprovido de individualidade e consciência,
que segue piamente os mandamentos do líder e operacionaliza os serviços banais.
Vale lembrar que Hitler se considerava o único homem indispensável para a
Alemanha, todos os outros eram descartáveis e substituíveis. Soma-se a isso, o
conceito criado pelo nazismo de “inimigo objetivo”, que em sua visão classista,
desconsidera a individualidade e a pluralidade dos judeus, considerando-os
todos uma massa que mais do que calada, deve ser exterminada.
Em relação ao segundo ponto – repetindo, a incapacidade dos
indivíduos de refletir e assumir a responsabilidade pelos seus atos -,
Eichmann, como a grande parte dos alemães, nega a sua consciência e
individualidade e passa a seguir os imperativos ordenamos pelo Führer, a ponto
de temer o futuro quando vê a derrocada do Reich, agora não haverá mais
diretivas e mandamentos, terá que orientar suas ação a partir da sua própria
consciência.
Eis o ponto central da banalidade do mal para Arend: a
negação da individualidade e da própria consciência. Os alemães
operacionalizaram o extermínio dos judeus porque eram incapazes de refletir
suas ações e se desresponsabilizavam por seus atos, em fundo último, porque
eram pessoas superficiais. A banalidade do mal nasce a partir da
superficialidade das pessoas. Quando a capacidade de refletir se ausenta, os
homens se tornam meras engrenagens que podem produzir o mal indistintamente,
sem finalidade ou motivo.
Paulo Flavio de
Andrade
Acadêmico de Ciências Sociais da Universidade do
Contestado (UnC)
Membro do Grupo de Pesquisa em Decentralização e
Federalismo – CNPq
Coordenador do Caderno Sala D do curso de
Ciências Sociais