A
escola priva suas crianças da liberdade, espontaneidade e alegria que
caracterizam as manifestações lúdicas que povoam as atitudes da infância.
Qualquer pessoa, com o mínimo conhecimento em educação física escolar poderia
endossar tal afirmação. O que proponho, portanto, é discutir as possibilidades
de tornar o ambiente escolar um território livre para a presença lúdica, mesmo
que de forma orientada. Faz-se necessária uma re-interpretação da concepção de
lúdico, enquanto um instrumento do processo educativo ou, ainda, um fim em si
mesmo.
Lúdico,
enquanto meio de educar, entenda-se pela utilização de atividades prazerosas,
com alto teor de motivação e inseridas em uma intencionalidade que busca a
aquisição de novos conceitos, numa mudança de comportamento do aluno,
representando uma aprendizagem associada aos conteúdos pré-estabelecidos pelo
professor.
Numa
outra visão, mais aceita, o lúdico no processo educativo, deveria ser um fim em
si mesmo, ou seja, despretensioso, gratuito e liberto de qualquer obrigatoriedade
‘disciplinar’1. Neste contexto, a criança poderia demonstrar, através de
atividades espontâneas e não dirigidas, toda sua essência e vigor, inerente à
sua faixa etária, respeitadas, ainda, suas experiências anteriores.
O
dicionário nos ensina que o Lúdico está relacionado a jogos, brinquedos,
divertimentos; o que já daria uma idéia clara do que tratamos mas, vamos
analisar o lúdico pela definição, poética até, de LUCKESI (1994):
“...O lúdico significa
a experiência de ‘ir e voltar’, ‘entrar e sair’, ‘expandir e contrair’,
‘contratar e romper contratos’, o lúdico significa a construção criativa da
vida enquanto ela é vivida. O lúdico é um ‘fazer o caminho enquanto se
caminha’, nem se espera que ele esteja pronto, nem se considera que ele ficou pronto,
este caminho criativo foi feito e esta sendo feito com a vida no seu ‘ir e
vir’, no seu avançar e recuar. Mais: não há como pisar nas pegadas já feitas,
pois que cada caminhante faz e fará novas pegadas. O lúdico é a vida se
construindo no seu movimento.”
Podemos, parafraseando
e complementando o título do livro de GONÇALVES2, concluir que o lúdico é tudo
que sentimos, pensamos, agimos e que nos proporciona prazer e satisfação, que
não nos é imposto contra nossa vontade. Mas concordando com LUCKESI, MARCELLINO
(1997) nos alerta para uma situação preocupante:
“A vivência do lúdico
leva ao entendimento da gratuidade da alegria, da não-relação entre o prazer e
o atual ordenamento institucional, que procura entorpecer o corpo, pela
organização, disciplina e rotina gerando a incapacidade dos sentidos. Ao negar
o componente lúdico da cultura infantil, a Escola contribui para a manutenção
dessa situação domesticadora”.
Não
pretendo, neste trabalho, defender nenhuma das posições ou mesmo indicar qual
poderia ser apontada como mais apropriada no processo educacional, até porque
tal pretensão seria deveras complicada, uma vez que, por maior que seja o
número de publicações ou relatos conceituando, classificando e identificando o
“‘lúdico”, olho com certa desconfiança tal iniciativa, por acreditar, assim
como Santin (1987) que o lúdico não pode ser conceituado, pois, cada vez que
assim fazemos, o tornamos um objeto de utilização sistematizado, como um
instrumento de trabalho, qual uma equação matemática. Portanto, sem querer
defini-lo, sinto a ludicidade como algo “volátil”, “mutante” na forma e
essência, onde, em uma mesma atitude, é ou deixa de ser lúdica.
Neste
momento, até pela brevidade que o presente artigo exige, retorno à idéia
inicial, que visa legitimar a personalidade lúdica no ambiente escolar, através
de uma nova concepção do papel da escola, que tem por objetivo maior a
construção da criança em um adulto capaz de socializar-se, produzir e usufruir
sua produção com qualidade de vida e, cada vez mais, conduzir esta tão aclamada
qualidade de vida para uma longevidade possível. Fator preponderante para uma
concepção adequada, ora pretendida, será entender o termo “construção da
criança” como um processo contínuo, onde o “alicerce” que servirá de sustentáculo
para a “edificação” do adulto almejado, nada mais é que as vivências prazerosas
que a criança vai acumular em sua trajetória para a “estação” adulta.
Identificamos
a fase de inserção à vida escolar como preponderante para a instauração de uma
vida social agradável e naturalmente produtiva3. Lembrando que, pela primeira
vez, a criança entra num mundo novo, onde os hábitos e normas são diferentes
daqueles que acostumara praticar no seio familiar e, que esta criança, ao
tornar-se apenas uma entre tantas outras, constantemente, encontrará nestas
leis impostas pela escola, que servirão para manter a disciplina escolar, para
que o professor possa avaliar e julgar o rendimento dos alunos, através de
regras ortográficas, gramáticas ou cálculos matemáticos, dificuldades para
poder e, confesso, nem sei se deveriam, entender.
ALVES
(2002)4, critica os programas de ensino:
“Os programas são uma
violência que se faz com o jeito que o corpo tem de aprender. Não admira que as
crianças e adolescentes se revoltem contra aquilo que os programas os obrigam a
aprender. Ainda ontem uma amiga me dizia que sua filha, de 10 anos, lhe dizia:
"Mãe, por que tenho de ir à escola? As coisas que tenho de aprender não
servem para nada. Que me adianta saber o que significa "oxítona"? Pra
que serve esta palavra?" A menina sabia mais que aqueles que fizeram os
programas”.
O autor, quando ao
associar a vivência escolar com a linha de montagem de uma fábrica, questiona a
impessoalidade com que é tratada a criança, sendo descaracterizada em sua
individualidade e transformada em um produto que é ‘moldado’:
“As linhas de montagem
denominadas escolas se organizam segundo coordenadas espaciais e temporais. As
coordenadas espaciais se denominam "salas de aula". As coordenadas
temporais se denominam "anos" ou "séries". Dentro dessas
unidades espaço-tempo os professores realizam o processo técnico-científico de
acrescentar sobre os alunos os saberes-habilidades que, juntos, irão compor o
objeto final. Depois de passar por esse processo de acréscimos sucessivos - à
semelhança do que acontece com os "objetos originais" na linha de
montagem da fábrica - o objeto original que entrou na linha de montagem chamada
escola (naquele momento ele chamava "criança") perdeu totalmente a
visibilidade e se revela, então, como um simples suporte para os saberes-habilidades
que a ele foram acrescentados durante o processo. A criança está, finalmente
formada, isso é, transformada num produto igual a milhares de outros.
ISO-12.000: está formada, isto é, de acordo com a forma. É mercadoria
espiritual que pode entrar no mercado de trabalho”.
Ao
observar o processo de evolução e adaptação às mudança de comportamento da
sociedade em geral, através dos tempos, notamos a estagnação da instituição
Escola, que, dentre tantas outras Instituições, estaria entre as que menor
numero de inovações sofrera.
Não
é necessária muita perspicácia para identificar no texto de FOUCAULT5 (1987),
sobre o controle das atividades, situações que, apesar de datarem do século
XVII, visando manter a disciplina e, com isto, melhorar a eficácia e a
produtividade6, são praticadas até hoje em nossas escolas. Foucault identificou
cinco itens fundamentais para manter a ordem e o rendimento em escolas,
exércitos, fábricas, hospitais e, principalmente, nas ordens religiosas
(mestres em disciplinas):
Horário –
“À ultima pancada do
relógio, um aluno baterá o sino, e, ao primeiro toque , todos os alunos se
porão de joelhos, com os braços cruzados e olhos baixos. Terminada a oração, o
professor dará um sinal para os alunos se levantarem, um segundo para saudarem
Cristo, e o terceiro para sentarem”.
Formação –
“ Acostumar os
soldados a marchar por fila ou em batalhão, a marchar na cadencia do tambor. E,
para isso, começar com o pé direito a fim de que toda tropa esteja levantando o
mesmo pé ao mesmo tempo”.
Posição do Corpo –
“Uma boa caligrafia,
[...] supõe-se uma ginástica onde deve-se manter o corpo direito, um pouco
voltado e solto do lado esquerdo, e algo inclinado para a frente, de maneira
que, estando o cotovelo pausado na mesa [...] O mestre ensinará aos escolares a
postura que estes devem manter os escravos, e a corrigirá seja por sinal seja
de outra maneira, quando dela se afastarem”.
A Articulação
Corpo-Objeto –
“Leve a arma á frente.
Em três tempos. Levante-se o fuzil com a mão direita, aproximando-o do corpo
para mantê-lo perpendicularmente em frente ao joelho direito, a ponta do cano à
altura do olho, [...]”.
A Utilização Exaustiva
–
“[...] é proibido
perder um tempo que é contado por Deus e pago pelos homens; o horário devia
conjurar o perigo de desperdiçar tempo –erro moral e desonestidade econômica”.
Evidente
que, guardadas as devidas proporções, presenciamos situações análogas, ainda
hoje, em muitas de nossas escolas, ainda que “travestidas” de um discurso
inovador, fundamentados nas concepções da Escola Nova ou Construtivista, sua
prática não corresponde à teoria anunciada. Vejamos:
“No entanto, é na
escola o lugar onde mais se ouve frases do tipo: ‘agora não é hora de
brincar!’; ‘estudar não é brincadeira’; ‘essas crianças só pensam em brincar!’
Como se a des-ordem inerente às brincadeiras se opusesse radicalmente à ordem
necessária ao aprender e ensinar!” ROSA (1998 p.90).
Volto
a ressaltar a necessidade de realizar esta “transmutação social” respeitando o
histórico de vida destes alunos, suas vivências e suas características
próprias, peculiares aos estágios de desenvolvimento atual. Importante lembrar
FREIRE (1997) ao observar a criança, que “sua marca característica é a
intensidade da atividade motora e a fantasia”, obviamente que, numa análise
mais radical, podemos nos reportar à PIAGET (1982) que em sua classificação das
fases do desenvolvimento cognitivo da criança, identificou estes alunos (6-7
anos) como estando no início da Fase Operatório Concreto, onde citamos algumas
características:
·
Predominância
do pensamento concreto
·
Início
da socialização
·
Interesse
por jogos coletivos
·
Competitividade,
porém com aceitação apenas pela vitória etc.
Isto
posto, pergunto: Porque a Escola “fecha os olhos” para estes dados? Por que
sujeitar as crianças à sua vontade, desconsiderando as experiências, índole e
desejos dos alunos?
Considerando,
ainda, que a fase de ingresso escolar é a etapa principal da socialização e,
que, se esta ocorre de maneira agressiva, traumática até, esta criança sofrerá
por muito tempo, talvez para sempre, poderíamos inferir que, possivelmente, sua
inserção no convívio adulto, tornar-se-á restrito e limitado por situações
análogas àquelas vivenciadas na infância.
Cabe,
portanto, ao professor, não apenas como um condutor do processo de aquisição do
conhecimento e facilitador das descobertas e relações interpessoais, mas,
também, enquanto objeto de transferência e identificação da figura familiar,
tornar esta experiência suave e prazerosa, transformando a ida à escola em algo
esperado e produtivo (já definido). Deve-se priorizar, além dos conteúdos
pré-estabelecidos por um programa a ser cumprido, as necessidades imediatas
destas crianças.
Uma
das perguntas mais freqüentes às crianças estabelece a preocupação com o “vir a
ser”, ou seja: ‘o que você vai ser quando crescer?’ Questão que denota a
negação do valor improdutivo da criança e preocupação com a formação7 delas.
Exemplo apropriado para a afirmação acima podemos encontrar em ALVES (1984) com
a crônica Da inutilidade da Infância8, muito bem sintetizada por FREIRE (1997):
“...um pai, todo
orgulhoso, pergunta ao filho o que ele vai ser quando crescer. A criança
responde que vai ser médico, um dos rótulos respeitáveis que o pai admite
(poderia também ser engenheiro, advogado, diplomata...). já outro pai, que tem
um filho leucêmico, diz-lhe que ‘se tudo correr bem, iremos ao jardim zoológico
no próximo domingo...’ Este pai não pode fazer perguntas sobre o futuro
simplesmente porque seu filho não tem futuro.. por ironia, a segunda criança
acaba vivendo com mais intensidade cada dia de sua vida (que deverá ser curta),
ao passo que a primeira apenas prepara-se para viver um futuro distante,
incerto, irreal... um futuro que inventaram para ela.”
Após
estas considerações, resta observar um fato que há muito me incomoda: ao ter
claro a necessidade de respeitar e oportunizar situações lúdicas aos alunos,
não seria a Educação Física, o campo mais fértil para que esta educação lúdica
ocorra?
SNYDERS
(1993) pode auxiliar neste questionamento ao afirmar:
“Quando eu induzo
alunos a falar sobre a alegria na escola, alguns recordam a alegria das
algazarras, a alegria do companheirismo. Muitos transpõem para a escola
alegrias vindas de fora, como festas combinadas na escola ou excursões
organizadas pela escola, mas todas com o objetivo preciso de sair da escola”.
Algazarras,
companheirismo, atividades fora da escola. Impossível não identificar a
presença e atuação da educação física com os termos adjetivados por Snyders.
Não raro, o professor de educação física é citado pelos alunos como o que
possibilita maior abertura, maior companheirismo e alegria em suas aulas. Tudo
isto poderia, numa análise simplista, responder positivamente a questão
proposta anteriormente, mas, apesar do grande valor de tais atitudes, não
garante o ensino, a descoberta do corpo físico, cultural, social e,
principalmente histórico daqueles alunos, pois a educação física antes de ser
uma disciplina pedagógica, é, sobretudo, um fenômeno humano, envolvendo toda a
vivência cultural de cada aluno.
“A corporeidade é,
existe e por meio da cultura ela possui significado. Daí a constatação de que a
relação corpo-educação, por intermédio da aprendizagem, significa aprendizagem
de cultura - dando ênfase aos sentidos dos acontecimentos e à aprendizagem da história
– ressaltando aqui a relevância das ações humanas. Corpo que se educa é corpo
humano que aprende a fazer historia fazendo cultura”. (MOREIRA, 1995).
O
que clamo, neste momento, é a utilização consciente da educação física como
‘ferramenta’ profícua para a ‘construção’ de adultos, tal qual citado no início
deste artigo. O educador (todos) deve estar preparado e atento para não exigir
da criança respostas ou ações que ela ainda não esta preparada; ao contrário, o
professor deve criar oportunidades que estimulem o desenvolvimento dessas
crianças, de forma que consigam pensar, relacionar, refletir e propor soluções
a quaisquer situações que lhe sejam apresentadas.
“Numa situação de
conflito (que deve ser proposta pelo professor), as perturbações geradas podem
levar o aluno a se perguntar sobre as ocorrências, especialmente os erros, se
quiser corrigi-los, e os acertos, se quiser mantê-los. Essas dúvidas geram a
boa pergunta pedagógica, isto é, a pergunta que o aluno faz para si mesmo e que
tem o poder de levar para o nível da reflexão aquilo que era ação exterior. No
plano da reflexão a ação pode ser percebida no que tem de generalizável, no que
tem de coordenação de ações, de forma a chegar ao nível da consciência naquilo
que a ação tem de mais geral (por isso generalizável)”.FREIRE (2002).
Gostaria,
para finalizar, de propor uma reflexão de nossa práxis, buscando as entender
que nenhuma proposta faz sentido, sem que tenhamos como foco principal, nossas
crianças, que, independente das condições materiais, pedagógicas, didáticas ou
mesmo com nossas regras coercivas ou libertadoras, sempre irão aprender, sempre
irão sorrir, sempre estarão alegres, pois isso é um patrimônio que lhes
pertence e, ninguém poderá priva-las. Então, por que não favorecer para que
possam aprender mais, sorrir mais e serem mais felizes? Tenho certeza que isto
nos tornará muito mais felizes também.
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